domingo, 10 de maio de 2015

Prefácio da Obra Psicografia e Prova Judicial por Oswaldo Giacoia Junior

Prefácio




Por motivos que serão explicitados na sequência, este prefácio não seguirá rigorosamente a ordem das razões que estrutura a dissertação de mestrado, da qual originou-se este livro. Em Psicografia e Prova Judicial, Michele Ribeiro de Melo opta por abordar o tema da prova a partir da teoria constitucional dos princípios, sobre cuja base faz recurso aos princípios processuais, e, depois de ter provido alicerces tão seguros, leva a efeito a apresentação e sustentação
de sua tese original a respeito da plausibilidade jurídica e legitimidade teórica da psicografia como prova judicial.

O núcleo do argumento central, declinado no horizonte da principiologia, desenvolve um entendimento conceitual de princípios como preceitos ou mandamentos fulcrais de um sistema normativo, como no caso específico deste livro, dos ordenamentos jurídicos, conferindo aos mesmos sentido vetorial, referências axiológicas, estrutura e organicidade. Na senda do jusfilósofo Robert Alexy, Michele Ribeiro de Melo sustenta que princípios são mandados de otimização, que podem ser tornados efetivos em variados graus, dependendo de seu enquadramento numa moldura de possibilidades fáticas e jurídicas. Neste
livro, a autora vale-se também da já clássica lição de Canotilho, segundo a qual “princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica ou jurídica”.1

Ora, um dos princípios fundacionais do constitucionalismo moderno é o devido processo legal, que remonta à célebre Carta de João Sem-Terra, de 1215, e que serviu de inspiração e fundamento de legitimidade ao constitucionalismo inglês. Já nos termos da Constituição Brasileira de 1988, o devido processo legal expressa-se pelo enunciado ‘ninguém será privado de liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal’. Deve-se considerar, todavia, que a implementação efetiva do devido processo legal impõe a tutela de bens jurídicos fundamentais, como a vida, a liberdade e a propriedade, proteção a ser garantida justamente por meio de um devido processo. Trata-se, portanto, do asseguramento processual do direito de deduzir pretensões em juízo, bem como de defender-se, fazendo uso de todos os recursos lícitos que o ordenamento jurídico disponibiliza para tanto. Entre tais recursos, deve-se contar essencialmente os meios probatórios, uma vez que estes conformam o conjunto dos instrumentos aptos à finalização do devido processo legal, e, consequentemente, do asseguramento do direito de, no mais amplo sentido
permitido pelo ordenamento, deduzir pretensões e defender-se numa demanda de natureza jurídica.

Não é outro o espírito do art. 5º, inciso LV, da Constituição Brasileira, quando, na rubrica dedicada ao princípio do contraditório e da ampla defesa, dispõe que ‘aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’.
É, portanto, no interior desse arco de prerrogativas e exigências formado por esses princípios que Michele Ribeiro de Melo insere sua defesa da psicografia como prova judicial. O sentido dessa abordagem é, considerado num primeiro aspecto, predominantemente empírico-jurisdicional. Magistrados singulares e cortes jurisdicionais de segunda instância têm reconhecido, em medida crescente, à psicografia o título de prova lícita e válida interior do ordenamento jurídico nacional. Trata-se, a partir dessa ótica, de uma questão de fato, com base na qual – e valendo-se de um número expressivo de decisões judiciais – Michele Ribeiro de Melo leva a efeito em seu livro uma fecunda e circunstanciada análise de casos, que não apenas ilustra, mas também contribui poderosamente para conferir densidade a seus argumentos de natureza teórica.

Se a competente análise de casos demonstra a plausibilidade da tese que propugna pelo reconhecimento da psicografia como prova judicial, do ponto de vista daquilo que já ocorre no direito brasileiro, a outra perspectiva da obra descerra o horizonte da legitimidade doutrinária daquilo que faticamente já se demonstrou como possível. É nesse sentido, e com esse escopo, que o livro advoga a admissibilidade da psicografia por razões principiológicas – como tese a ser considerada à luz do devido processo legal, do direito ao contraditório e à ampla defesa. Nesse sentido, a questão que se coloca é a seguinte: a psicografia tem-se demonstrado como um possível meio de prova legítimo. Ora, se assim é, porque não o admitir teórica e explicitamente como tal, uma vez que poderia ampliar e fortalecer tanto o princípio do contraditório quanto o direito de ampla defesa, ambos garantias constitucionais estruturantes dos ordenamentos jurídicos que nascem com as democracias liberais e com os modernos estados de direito?
É nesse ponto que se situa o maior desafio dessa obra: o enfrentamento de objeções de natureza teórica, conceitual e epistemológica.
O principal argumento contra a admissibilidade da psicografia como meio probatório lícito e válido é sua vinculação essencial com a doutrina espírita. Ora, um entendimento desta última como um conjunto de dogmas confessionais, ou como uma doutrina religiosa, que só pode exigir adesão com base na fé ou na crença, nunca pela prova empírica ou pela demonstração, apresenta-se como um conjunto de teses não racionalmente sustentáveis, e, portanto, desprovidas de suficientemente fundamentação e legitimação teórica. Uma tese como a que propõe o presente livro seria, de um tal ponto de vista, não apenas inadequada, mas também – porque desprovida de sustentabilidade lógica – privada de direito de cidadania na ciência jurídica moderna, configurando um dogmatismo ultrapassado pela modernidade cultural.
É preciso observar que, nesse quadro, o veto contra a psicografia tem por base e pressuposto uma convicção tradicional de ciência como saber provido de uma verdade absoluta, imparcial, universal e imutável, que admite a si mesma como único padrão de aferição e medida para o conhecimento racionalmente válido.
Ora, um dos principais méritos do livro de Michele Ribeiro de Melo consiste justamente em ousar defender sua tese a favor da psicografia como prova judicial sem recorrer à doutrina espírita como dogma religioso, em não argumentar como quem professa artigos de fé, para os quais se exige uma aceitação pela via dos sentimentos.
É partindo de um exame prévio dos aspectos científicos da doutrina espírita que a autora tenta colher subsídios necessários para levar a efeito suas análise e extrair suas conclusões. Ora, este é um procedimento que produz efeitos tanto epistemológicos quanto metodológicos.
Pois aqueles que pretendem desqualificar liminarmente a tese da autora, invocando sua pertença ao âmbito irracional do sentimento, ou ao domínio da crença religiosa, partem da tácita asserção de que são detentores de um conceito unívoco, consensual e indisputado de ciência, a partir do qual podem decretar que o argumento a favor da psicografia como prova não vale porque é derivado do espiritismo, como se também o espiritismo não pudesses invocar seu direito à participação na racionalidade lógica e científica.
Ora, a autora mostra, valendo-se da magistral lição de Silvio Chibeni, à qual alia sólida hermenêutica de textos basilares de epistemologia e teoria da ciência contemporânea, que justamente “não existe um Conselho supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa, agências de fomento e, principalmente, periódicos especializados”.
Depois da epistemologia de Khun, Popper, Lakatos e outros, firmou-se o entendimento de acordo com a qual as ciências se desenvolvem com base em paradigmas, que são constituídos por conjuntos de proposições teóricas gerais, das quais podem ser derivadas leis técnicas para aplicação das primeiras, capazes de receber a adesão da comunidade científica. Nesse sentido, das ciências contemporâneas, como dos paradigmas, vale a observação de acordo
com a qual compartam: “uma ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam a conexão com os fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria, etc.”.2
Com base nesses elementos, pode-se argumentar que a pressuposição de um conceito de ciência enquanto saber portador de verdade absoluta é um mito; ou antes, que a própria concepção de ciência sofre deturpações por força de um mito que foi criado a respeito de seu caráter indiscutível, de sua verdade absoluta, imutável, inquestionável. Nenhuma ciência brota da acumulação de dados neutros, independentes de variáveis ligadas a contextos de observação; nenhum conjunto de dados puros assegurados de uma vez por todas contra interpretações pode conduzir a leis científicas por uma via direta e exclusivamente lógica. Teorias e leis científicas só o são na medida em que são também, e antes de tudo hipóteses falseáveis.
Tendo chegado a esse ponto, Michele Ribeiro de Melo pode então alcançar o nec plus ultra de sua força argumentativa: demonstrar que o dogmatismo ingênuo não deve ser atribuído à sua tentativa de demonstrar a legitimidade da psicografia como prova judicial, mas antes àquela concepção rígida e acrítica de ciência, que não alcançou ainda o grau de desenvolvimento epistemológico adequado à atual teoria e história da ciência. A impugnação da tese desta autora só poderia ser suficientemente sustentada – com base no argumento habitual de que a psicografia, enquanto derivada da doutrina espírita, não pode sustentar pretensões à livre adesão racional – depois de ter-se demonstrado, por razões necessárias e suficientes, que o espiritismo não pode aspirar a qualquer estatuto de cientificidade, ou seja que, enquanto corpo doutrinário, não satisfaz os requisitos e os padrões característicos dos paradigmas científicos contemporâneos.
Antes da realização exitosa dessa tarefa, desqualificar a possibilidade de argumentar teórica e praticamente a favor da psicografia como meio legítimo de prova judicial não é equivocado apenas do ponto de vista de questões de fato, mas também por razões de direito. A partir dessa base, Michele Ribeiro de Melo está legitimada a sustentar, exclusivamente com apoio na força do melhor argumento – e isso tanto perante aqueles que aceitam a doutrina espírita, quanto perante aqueles que rejeitam –, seu entendimento de que a psicografia é uma prova documental válida no ordenamento jurídico brasileiro, podendo ser submetida a todas as regras concernentes à prova documental, inclusive a análise grafotécnica.
O leitor interessado em direito, que também aprecia o valor dos trabalhos de natureza interdisciplinar, encontrará na presente obra uma contribuição de grande relevância e atualidade para o debate a respeito de questões fundamentais da ética e da ciência jurídica, além de um exemplo notável de salutar ousadia intelectual.

Oswaldo Giacoia Junior


1 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1.123.
2 CHIBENI, S. O Paradigma Espírita. In: Revista O Formador. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, agosto de 1987. p. 243.

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